Sebastião Nery
Ludmila era interprete, jovem e bela. Falava espanhol e português, no Festival Mundial da Juventude, em Moscou, em 1957. Tinha a mãe em Moscou, um irmão em Praga e um avô no Cáucaso. Acabado o Festival, destacaram-na para acompanhar-me como tradutora em debates e palestras em Moscou, na Universidade da Amizade dos Povos.
No fim dos debates, almoçávamos ou jantávamos juntos. Cada dia mais debates, cada dia mais juntos. Falávamos de tudo, sobretudo de nós, que tínhamos exatamente os mesmos 25 anos e os mesmos sonhos. Quando eu passava para a política soviética, ela sorria um sorriso enigmático e calava. Estava profissionalmente impedida de avançar o sinal político.
UM POEMA – Ela não avançava, avancei eu. Já me desmanchando de encantos, depois de um doce jantar no restaurante do hotel “Ukraina”.
Escrevi ali um poema, se é que podia chamar de poema. Era um beijo gráfico, quente e túmido como os beijos de amor: “Rosa de Moscou”. Falava dos jardins de papoulas que cobriam Moscou naquele outono. Pediu para assinar, assinei: – “Para Ludmila, Rosa de Moscou”.
Ela não podia subir a meu apartamento, eu não podia ir à casa dela. Nunca mais fomos os mesmos.
NA CASA DELA – Uma outra noite, caminhando depois do jantar no jardim de papoulas perto do hotel, Ludmila começou a cantar “Móscova Vétchera” (“Tardes de Moscou”) e pela primeira vez me levou à sua casa. O avô estava doente, sua mãe fora para o Cáucaso. A casa, nos subúrbios de Moscou, pequena e ajardinada, era nossa para o fim de semana. E de metrô. Na sala, emoldurado e pendurado, meu “Rosa de Moscou” para ela. Ludmila não falava do pai. Eu perguntava, ela ficava calada, os grandes olhos caucasianos parados, longe. Insisti, disse apenas:
– Morreu. Era jornalista, como você.
E chorou devagarinho. De madrugada, já quietos de amor, forcei – Seu pai morreu de quê?
Ludmila passou a mão embaixo do queixo, como se fosse uma navalha, fez uma cara de horror e disse baixinho: – Stalin.
E dormiu chorando em meus braços a saudade do pai assassinado por Stalin.
GUARDEI A ROSA – No fim de semana em Moscou, voltamos à casinha pequena e ajardinada. O avô de Ludmila nunca mais voltou do Cáucaso. Morreu lá, sem ela revê-lo. Prometi jamais escrever-lhe nem falar em seu nome no que escrevesse ou publicasse. Perderia emprego, carreira, quem sabe a liberdade. Guardei minha “Rosa de Moscou” só para mim.
Quando Ludmila apareceu no hotel de manhã, com o bilhete na mão, para levar-me até a estação ferroviária, meu coração vacilou. Sabia que ia perdê-la para sempre. Aquele era um mundo que engolia as pessoas. Como poderia dar-lhe um beijo de despedida? Queria, mas não devia. Percebeu:
– Não fique triste assim, que ainda vai ser pior para mim do que já é. Não falta muito para eu perder você. Nunca pensei que aquele jantar, aquele poema, aquelas noites, fossem fazer comigo o que fizeram. Se eu pudesse, sumiria com você. Mas não vamos estragar nosso ultimo almoço. Marquei seu trem para o fim da tarde. Vamos almoçar em um restaurante pequeno, muito bonitinho, perto da ferroviária. Juro que não vou chorar.
E chorou. No fim, brindamos nossa devastadora e silenciosa dor como Stalin brindava com Churchill. Com um conhaque da Geórgia. Quando o trem deu o segundo aviso de partida, fraquejei:
– Perdão, não resisto, vou lhe dar um beijo.
– Aqui há olhos de todo lado.
Nunca mais a vi. Em 1990, Adido Cultural em Paris, voltei a Moscou para tentar descobri-la. Impossível. Cada esquina continuou uma fantasia.
Um pedaço de mim está até hoje na estação de Ludmila.